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quarta-feira, 5 de maio de 2021

[0136] O texto de António Ferro sobre Florbela Espanca, de 24 de Fevereiro de 1931, no "Diário de Notícias" (ver post anterior)

"Diário de Notícias", 24.02.1931, pág. 1 - Cópia exacta da grafia original

UMA GRANDE POETISA PORTUGUESA

Busto de FE, por Diogo de Macedo,
Jardim Público, Évora
Inaug.1949
Nunca vi Florbela Espanca, nunca lhe falei, nunca a lisonjeei, nunca fui lisonjeado por ela. Da sua personalidade conhecia, apenas, juntamente com o seu nome ingénuo, precioso, quase ridículo, alguns sonetos interessantes mas filhos de outros sonetos, sujos de influências, com dedadas de outros poetas… E Florbela Espanca ficou arrumada, no meu ficheiro, durante muito tempo, como uma das poetisas da colmeia, como uma das cigarras do nosso lirismo inofensivo, de «palcos e salas»…

Passaram-se anos e eu deixei de ouvir falar e Florbela, como deixo de ouvir falar, de quando em quando, em certas poetisas que encontraram no casamento a rima difícil que procuram.

Há poucos meses, porém, pegando numa revista literária, , topei com um soneto que entrou pelos meus olhos dentro, um soneto que fecha com estes versos maravilhosos, versos que justificam Paul Valery quando diz «que o lirismo é o desenvolvimento de uma exclamação»:

            Sou eu! Sou eu! A que nas mãos ansiosas

            Prendeu da vida, assim como ninguém,

            Os maus espinhos sem tocar nas rosas!

Fiquei impressionado, confesso, mas duvidoso: «Quem sabe? Talvez fosse por acaso…» Mas pouco depois, na semana seguinte topei com outro soneto e compreendi, definitivamente, que não estava diante duma poetisa de «acaso», como ao princípio julgara, mas diante de uma grande poetisa, duma poetisa-poeta. Nesse momento, devo dizê-lo, havia já quem fizesse justiça completa a Florbela Espanca e é lealdade registar os nomes das suas companheiras Teresa Leitão de Barros, Laura Chaves, Fernanda de Castro e outros nomes. com certeza, que procuravam trazê-la para a luz e para a glória! De repente, quando já estava no prelo o seu livro «Charneca em Flor», o beijo trágico da morte, o beijo da morte, uim beijo mutuo consentido, um beijo pedido... Esse beijo iluminou, bruscamente, todos os seus versos, timbrou-os, serviu de ex-libris a Florbela, cujo nome deixou e ser ridiculo e precioso, cujo nome ganhou um sabor medianimico, espectral. Florbela matou-se, «desfolhou-se» como uma flor cansada e a sua morte foi um pingo de lacre vermelho sobre  a sua inquietação, sobre a sua tortura... A sua morte dramatica, angustiosa - selo da sua arrepiante sinceridade, soma dos seus versos... Se uma duvida perturba a nossa emoção, na leitura do seu livro, se um soriso de vaga ironia pretende secar os nossos olhos humidos, ha logo uma voz intima  que nos diz: «Pois sim, amas ela matou-se...» E o perfil aereo, o perfil astral de Florbela Espanca acompanha-nos, numa flutuação, até ao ultimo verso de «Charneca em Flor».

Que disseram os jornais sobre a sua morte? Nada... Duas linhas apagadas na necrologia, onde não havia, sequer, uma referencia aos seus versos, aos seus versos sinceros, crucificados, enormes! Nem um comentario, nem um adjectivo, nada! Apenas eu e mais alguns, poucos, lemos a sua morte, recitámos a sua morte, como um dos seus mais belos sonetos, o soneto-redoma de todos os seus versos...

Fiquei à espera do seu livro, do regresso da sua alma... Entretanto, o «Diãrio de Notícias», na sua página «De Norte a Sul», publicava um artigo comovido, enternecido, de Celestino David, em que se anunciava, em lindas palvras de justiça, a próxima aparição da «Charneca em Flor», da charneca em dor... A ilustrar esse artigo, um soneto inédito do livro, um soneto que apagou todas as possíveis dúvidas que pudessem existir ainda no meu espírito sobre o grande caso da poesia portuguesa, de lirismo portuguès, que é o caso dramático de Florbela Espanca. Esse soneto chama-se «Pobre de Cristo» e é todo o coração do Alentejo em labareda e cinza e é toda a nostalgia da terra natal, que se perdeu, a terra familiar e estranha, que nós conhecemos e que já não nos conhece... Não resisto à tentação de transcrever de novo, essa pequena obra-prima que me fez aguardar a «Charneca em Flor», com alvoroço, como se espera uma relíquia. Eis o soneto:

            Ó minha terra na planície rasa,

            Branca de sol e cal e de luar,

            Minha terra que nunca viste o mar,

            Onde tenho o meu pão e a minha casa.


            Minha terra de tardes sem uma asa,

            Sem um bater de folhas…a dormitar…

            Meu anel de rubis a flamejar,

            Minha terra moirisca a arder em brasa!


            Minha terra onde meu irmão nasceu

            Aonde a mãe que eu tive e que morreu

            Foi moça e loira, amou e foi amada!


            Truz... truz... truz... Eu não tenho onde me acoite

            Sou um pobre de longe, é quasi noite,

            Terra, quero dormir, dá-me pousada!

No próprio dia em que li este soneto, cujos versos se agarraram a mim, como vozes, e nunca mais me largaram, parti para Coimbra, para a cidade-poetisa, trovadoresca, «a gravura suspensa que Portugal oferece aos olhos do sud-express». E foi em Coimbra, onde as casas dos estudantes, alcandoradas nos telhados, nas ruas estreitas, são como ninhos em árvores centenárias

 

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