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quinta-feira, 11 de agosto de 2022

[0334] Relembrando textos do programa das Festas dos Capuchos (7 - 2016)

  Sobre as Festas de 2022, ver AQUI

CAPUCHOS, A FESTA MAIOR DE VILA VIÇOSA, NO INÍCIO DOS ANOS 20... DO SÉCULO XX

Joaquim Saial

Grafia original

A notícia mais antiga que aqui trazemos sobre a Festa dos Capuchos é do diário regionalista de Évora, "O Alentejo", de 27 de Agosto de 1921 [1]. Diz-se ali que Vila Viçosa ia "tirar-se do (…) costumado torpor em que sempre se [encontrava], pelas anunciadas festas em honra do Senhor Jesus da Piedade [2]". O apontamento anónimo, mas pelo teor certamente da pena de correspondente da vila, para além de falar nessa quebra de rotina do langor local, detinha-se em considerações interessantes e elucidativas da vivência calipolense desses tempos de há cerca de 100 anos [3].

Festas estas, que vão ser celebradas com a maior pompa possivel, devido aos esforços empregados pela Comissão constituida, da qual fazem parte verdadeiro amigos, procurando sempre engrandece-la em tudo que seja necessario.

São êles os srs. Padre Manso [4], Miguel Caeiro, Antonio Branco, José Aldeagas, Antonio Pombeiro e Pedro Martinho que, com a sua muito bôa vontade, teem conseguido vencer os maiores obstáculos que se teem metido de permeio.

Festa antiga e concorridissima por todas as terras do Alentejo, que ocorrem divertir-se nos bailes e descantes populares que duram por essas noites adiante.

Quanto é belo tudo recordar-se tudo quanto se diga histórico?...

O Templo e o Convento dos Capuchos onde terão logar nos dias 11 [5], 12 e 13 do mez próximo as festas tão tradicionais, já data do ano 1606 (…)

O texto prossegue com descrição mais ou menos pormenorizada do edifício e mais algumas indicações que hoje são significativas em termos de história do mesmo e da festa:

O edifício acha-se quasi todo em bom estado de conservação, contribuindo um frade de nome João Pedro Serra, que velou por ele sempre com carinho por muitos anos.

Actualmente pertence á viúva de António Carlos da Silveira Menezes, que tambem lhe deu a sua justa conservação.

Terminava o artigo com referência à Casa de Bragança e de novo a Vila Viçosa, chamando-lhe "modestíssima terra que fica a um canto da província do Alentejo" mas "sempre olhada como devia merecer, pois o seu nome era pronunciado com o respeito que lhe era devido."

Ressaltam então da saborosa narrativa, para além de dados sobre a comissão das festas, os nomes de um dedicado conservador e de pelo menos uma proprietária do local, e a menção aos bailes e descantes populares que duravam até de madrugada.

O mesmo jornal, na sua edição de 10 de Setembro de 1922 [6] volta a aludir às festas. Sob o título "Vila Viçosa – Deslumbrantes festas em honra do Senhor Jesus da Piedade nos dias 10, 11 e 12", podia ler-se o seguinte texto:

Com um vastissimo e magnifico programa realizam-se hoje, amanhã e depois as imponentes festas em Vila Viçosa, linda e florescente vila alentejana.

As tradicionais festas denominadas dos Capuchos devem este ano deixar a perder de vista as celebradas nos anos anteriores a avaliar pelo grandioso programa, que não publicamos na integra, por absoluta falta de espaço.

Festas religiosas, pregando o eloquente orador sacro, exm.º sr. P.e Lopes Manso, excelentes concertos musicais pelas bandas dos Francêses, do Barreiro e Humanidade de Palmela e garraiadas explendidas, tudo, enfim, promete atraír enorme concorrencia a tão afamados festejos regionais.

Nada de muito diferente dos tempos actuais, como vemos, incluindo as garraiadas, uma das faces da vertente taurina que as festas dos Capuchos ainda mantêm, consubstanciada em touradas, largadas e brincadeiras taurinas.

Precisamente desta festa, "O Alentejo" faz três dias depois [7] descrição pormenorizada, através de Ruy de Mello. O autor começa por se referir à modernidade dos tempos e conta que em vez de ir, como antes se fazia, num carro de molas de azinho, chegou de comboio, "um comboio vagaroso, onde uma multidão ruge e canta, apertada como em latas de conserva". É este o ambiente que Mello nos oferece e que parece ser o transmitido pelos que de Évora se dirigiam a Vila Viçosa, em animada romaria, para os divertimentos capuchais. 

Chegado, o nosso jornalista vai a pé para o terreiro festivo e disso se queixa: "Da estação até aos Capuchos é uma boa tirada. Fui a pé por ignorar que existem trens que fazem a carreira do recinto da festa para a vila e vice-versa. Pelo caminho, muito pó – aquele pó que é companheiro do sol aqui no Alentejo…" Mais duas referências curiosas, portanto, verificando-se que a afluência de gente proveniente dos arredores era tanta que até organizadas carreiras de trens havia… por caminhos de terra batida, numa urbe ainda com poucos empedrados, pouca calçada. Mas mesmo assim chega num instante ao templo: "Achei-me sem querer, quasi, no largo da igreja. Havia, áquela hora umas raras pessoas. Da igreja vinham cantos religiosos onde destacava uma voz de falsête capaz de acordar um morto." 

Entretanto encontra Raul Matroco [8] no adro da igreja e na companhia do amigo prossegue a sua visita ao local. Este Matroco, que também escrevia no jornal, era possivelmente calipolense ou pelo menos de família da terra, pois na casa de uns primos Matroco falecera em 1884 Henrique Pousão. Inevitavelmente, comenta o quadro dos fradinhos escultóricos que velam um companheiro: "É muito curioso e ráro este Presépio [9] avultando muitos Capuchos com dedos, braços e pernas quebradas pelo rapazio e concertadas há pouco tempo."

E entra no templo. Ali, dá com o Padre Lopes Manso em plena e animada sessão oratória. Esta, embora não de teor religioso, fala dos céus. Mas uns céus de aviação nos seus tempos áureos. O Padre Manso gabava aos fiéis, "no meio do mais rigoroso silêncio", a gloriosa viagem de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, recentemente realizada, com várias peripécias e transtornos, entre 30 de Março e 17 de Junho de 1922. Mas acabado este moderníssimo sermão, começou a ladainha. Mais alguns cânticos e a cerimónia estava terminada.

É então hora de almoçar, em casa do capitão Francisco Ribeiro, que conhece por intermédio de Raul Matroco e o recebe com "requintes de gentileza". E aproveita para gabar a simpatia das gentes da terra, lembrando que se em Vila Viçosa já não existiam na altura descendentes de reis, pelo menos ali viviam ainda representantes da velha fidalguia portuguesa, pelo nascimento e pela educação.  

Às cinco horas, está na corrida de touros, de imediato interrompida por fortíssima carga de água.

O pânico foi enorme, apertando-se toda gente de encontro á porta principal. Os vestidos de organdí [10], de que havia profusão, pegavam-se aos corpos das mulheres que nos faziam lembrar certas bonecas muito escorridas de ancas e de seios… As vacas eram razoáveis. O pessoal – amadores – fez o que poude, á custa de muito trambolhão que provocou risota.

Fraca corrida, de cartel para esquecer, e chuva a cântaros, numa tarde sem história mas com farto elemento feminino, ao que parece – ou que ao autor pareceu, em sugestiva observação anatómica. Este, voltará ainda à lama do arraial à noite, para ouvir as bandas atrás anunciadas, do Barreiro e de Palmela, e ver o fogo-de-artifício, junto à "igreja lindamente iluminada". 

Cerca de 100 anos depois, nada parece ter mudado, tirando a chegada de vendilhões de américas e áfricas e de etílicas barracas cervejeiras que nos dias de festa agora se avantajam, na pracinha de três igrejas, algumas casas, um coreto, um chafariz e um redondel. Ou seja, apesar de tudo, a tradição aqui, ainda é o que era…

NOTAS:

[1] P. 4.

[2] Do conjunto monástico que dá suporte religioso às festas constam a Igreja de Nossa Senhora da Piedade, o Convento de São Francisco e respectiva cerca. São remotas as suas origens, de cerca de 1550, tendo passado por vicissitudes várias ao longo dos séculos. A construção actual é mais tardia (1606-10). O conjunto está classificado como Monumento de Interesse Público, através da Portaria n.º 639/2012, DR 2.ª Série, n.º 212, de 2.11.2012. A portaria foi assinada em 22.10.2012 pelo então Secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas.

[3] Esta e as seguintes transcrições seguem a grafia da época.

[4] Padre Lopes Manso, como veremos, em notícia do ano seguinte.

[5] No texto não existe esta vírgula que aqui introduzimos, para facilitar a leitura.

[6] P. 2.

[7] 13.09.1922, p. 1.

[8] Raul Matroco fora co-fundador em 1919 do Grupo Pró-Évora. Em "A Cidade de Évora" (Boletim da Comissão Municipal de Turismo de Évora), Ano 1.º, n.º 4, Setembro.1943, p. 16, Celestino David escreve que Raul Matroco era primo de Pousão.

[9] Designação incorrecta, pois trata-se de um velório, mas que, como vemos, no texto vem em itálico.

[10] Alguns deles decerto feitos pelas irmãs Saial, Conceição e Joana, tias-bisavós do autor deste texto. Afamadas costureiras da vila, nessa altura e em décadas posteriores, tinham cada uma seu negócio de modista: Conceição, no quarteirão destruído nos anos 40, depois na R. Padre Joaquim Espanca e por último no Terreiro de Santo António (actual n.º 10), até finais dos anos 50; Joana, na R. Câmara Pestana, n.º 60, até bastante mais tarde.

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