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quinta-feira, 11 de agosto de 2022

[0331] Relembrando textos do programa das Festas dos Capuchos (4 - 2007)

  Sobre as Festas de 2022, ver AQUI

Foto Joaquim Saial

Texto de 2007, inserido na publicação Programa das Festas

O CÓDICE DOS CAPUCHOS (versão curta - a versão longa, que dada a dimensão teve de ser encurtada, para caber na página do programa, pode ser lida a seguir a  esta)

Joaquim Saial

Um dia, cerca de 1713, alguém deu a ordem para a feitura da chamada Capela do Trânsito de S. Francisco, no convento dos frades capuchos de Vila Viçosa. Abstraindo o restante aparato artístico do reduzido local, o que mais ali sobressai é a cena escultórica, populista e anónima, em que o defunto poverello “vê” a sua morte lamentada por oito seguidores. Ora, segundo rezava esquecido e também incógnito Códice dos Capuchos existente até há pouco na Câmara Municipal de Vila Viçosa, onde o encontrámos por mero acaso de investigação histórica, a figura mais próxima da janela gradeada, a do lado direito, representaria o calipolense frei Bartolomeu da Conceição, cujo espírito dentro dela terá estado guardado, por vontade de S. Francisco, desde o óbito daquele, à volta de 1715, até 1 de Novembro de 1755.

Motivos do penoso castigo e do inesperado fim deste?... 

Referia o citado Códice que o nosso monge, por alturas de Setembro se retirava do ascetério, dando a entender que partia em missão doutrinária pelos olivais, searas e povoados das cercanias mas que ao invés disso envergava roupas seculares, cortava a barba que lhe compunha o rosto durante os outros onze meses do ano, cobria o crânio rapado com um gorro de flanela e se ficava pela vila, disfarçado de viandante acabado de chegar de Lisboa. Então, saboreava até se saciar as iguarias das tabernas da vila, enchia-se com as tibornas e o sericá locais, degustava o afamado Borba, (tudo prazeres proibidos nos Capuchos, que mendicantes não podiam ter tais faustos comestíveis) e, pior que isso, fazia a corte às servas das casas nobres, com especial predilecção por aquela sempre renomada cozinheira do Paço Ducal, a Joana das Migas – que, contava-se, teve oito filhos, cujo pai nunca ninguém conheceu, todos nascidos em Junho… Passado esse mês de liberdade auto-imposta, o bom frade voltava às suas obrigações religiosas, humilde e laborioso, rezando substancial parte do dia e na outra trabalhando na horta do convento, onde os seus legumes eram os mais viçosos e a sua hortelã a que maior efeito aromático dava à sopa da panela.

Mas esse comportamento, digno onze meses por ano, não terá pesado quando na hora da morte S. Francisco foi avaliar a alma do discípulo, na companhia de S. Pedro – a conduta imprópria, de só 30 dias, repetida ano após ano, teve maior força e o castigo foi ficar a sua alma encerrada numa das estátuas de barro da famosa capela do convento em que passara parte significativa da vida terrena. Foi a partir daí que, rezava o Códice dos Capuchos, factos estranhos começaram a acontecer. Por vezes, sempre em Setembro, junto à Capela do Trânsito, ouvia-se misterioso lamento, misto de ladainha e choro, que não só amedrontava os que por ali passavam, como os próprios irmãos – que logo faziam grandes penitências e só não ficavam com os cabelos em pé, porque frade que se preze não os tem no alto do cocuruto… A partir daqui, o Códice nada mais dizia sobre os eventos ligados a frei Bartolomeu.
Saltemos para 1 de Novembro de 1755. O aparatoso terramoto que destruiu Lisboa e escalavrou mais localidades do país, também agrediu com força a vila calipolense. O sismo, para além de outras graves malfeitorias provocadas na terra, deu cabo de parte significativa da nave e coro da igreja do convento capucho. Resta-nos imaginar que na estátua onde estava enclausurado o espírito de frei Bartolomeu se produziu uma fissura e que ele por aí se terá escapado, finalmente…

Mais tarde, alguém teve a feliz ideia de criar as festas dos Capuchos, hoje famosas em todo o território nacional. Mas se o Códice nada mais contava sobre frei Bartolomeu, é facto que algo de imaterial ainda paira no ar, proveniente daquele sítio, que confirma a arenga que aqui trouxemos. Se não, vejamos: 

Nunca falham as largadas de touros, durante a Festa dos Capuchos. Quantas pessoas já morreram por causa delas? Nenhuma! E vários dos que estiveram em situação mais delicada, ficando contudo apenas com um dedo partido, uma entorse ou simples galo na cabeça, dizem que no momento em que o toiro lhes ia marrar em parte vital sentiram oportuno empurrão que afastou as ornamentações do bicho das suas carnes. 

Quantas vezes houve frio e forte ventania no arraial? Tantas e tantas! De vez em quando, lá se vê uma peruca pelos ares, echarpes voando, as donas atrás delas, em cima dos seus chinelinhos de salto alto, mas do coreto onde não falha uma filarmónica a tocar, já alguém viu escapar-se uma pauta musical? Uma sequer? Jamais! E houve músicos que falaram de fenómeno singular: folhas sendo mudadas, sem eles lhes tocarem, na altura certa, à medida que a música se ia desenrolando.

Não há Festa dos Capuchos sem fogo de artifício, mas tirando uma ou outra telha chamuscada ou horta em que se queimam duas ou três alfaces, alguém já viu, por causa do fogo, haver um incêndio? Jamais! E a Mariana do Cruzeiro, que ali mora, disse-nos que na última festa, quando a corda da roupa começou a arder devido a um foguete, as chamas pararam mesmo junto a uma peça íntima sua, comprada a uma cigana no mercado da semana anterior.

Nas barracas dos frangos assados, alguém já ficou com um osso de galináceo atravessado na garganta? Jamais! E o Zé Borrego, que adora franguinho na brasa e o acompanha com fartas litradas de tinto, quando já trôpego da bebedeira caiu em 2005 perto da igreja de Santiago, não sentiu a cabeça ser-lhe amparada por mãos invisíveis, antes de tombar no lajedo, onde caiu suavemente, sem prejuízo da cachimónia?

Enfim, não nos alonguemos mais em exemplos de bondade do espírito arrependido e caridoso de frei Bartolomeu, pois os aqui descritos, entre as dezenas que todos na terra dos duques conhecem, são mais que suficientes. Que os calipolenses e os forasteiros que este ano vêm aos Capuchos se acolham à protecção do simpático cenobita, certos de que nada lhes perturbará o divertimento procurado nem a aura de consagração que as Festas de Vila Viçosa de há muito têm. 

Quanto à história, os que não acreditaram nela, é porque são mesmo incrédulos. Há gente assim… Relativamente a isso, nada a fazer. E para os que são como S. Tomé, é escusado procurar a brecha que o terramoto gerou na escultura, porque os fradinhos foram restaurados em tempos recentes. É verdade, já nos esquecíamos de dizer que, por triste azar, o Códice dos Capuchos tombou para dentro de um balde de cal, durante as últimas pinturas no edifício dos Paços do Concelho e ficou completamente destruído. A asseada mania alentejana das caianças por altura das festas, às vezes resulta em irremediáveis desgraças, como esta…


O CÓDICE DOS CAPUCHOS (versão longa, inédita até agora)

Naquele 6 de Julho de 1606, quando o duque D. Teodósio II e seu filho João, futuro rei IV do mesmo nome, assistiram ao lançamento da primeira pedra do Convento de S. Francisco dos Capuchos, faltavam escassos quatro anos para que o cenóbio ficasse pronto, a 31 de Maio de 1610. 

Um dia, cerca de 1713, alguém deu a ordem para a feitura da chamada capela do Trânsito de S. Francisco. Abstraindo o restante aparato artístico do reduzido local, o que mais ali sobressai é a cena escultórica, populista e anónima, em que S. Francisco, morto, “vê” a sua morte lamentada por oito fiéis seguidores. 

Saltemos para 1 de Novembro de 1755. O aparatoso terramoto que destruiu Lisboa e mais terras do país, também agrediu a vila calipolense. O sismo, para além de outras graves malfeitorias provocadas na terra, deu cabo de parte significativa da nave e coro da igreja do convento capucho. E era ali, nesse mesmo coro que, em formoso armário de pau-santo oferecido por El-Rei D. João V se guardava o Códice dos Capuchos, então desaparecido, escrito por frei Afonso de Castro, famoso superior da Casa. Aqui, o leitor dirá: lá vem mais um códice, não bastavam o do Dan Brown e o do tal pivot do telejornal… Bem, a verdade é que, sem provas que não sejam os testemunhos orais passados de geração em geração entre moradores próximos do adro do estabelecimento religioso e dos outeiros da Forca e do Ficalho, onde a informação foi por nós bebida, resta-nos acreditar nestes últimos – mais ainda, tendo o segredo passado ao povo através do último frade, João Pedro Serra, que assegurou a guarda do edifício até 1863, após a extinção das ordens religiosas de Maio de 1834…

Resumamos: segundo as nossas fontes, o Códice, livro de umas 500 páginas, entre outro historial da comunidade, referiria a dado passo que as figuras de barro representavam frades genuínos, que tinham andado por este mundo de Deus, pregando os ensinamentos do poverello de Assis. E que um deles, o mais próximo da janela, no lado direito da cena, figuraria frei Bartolomeu da Conceição, calipolense que adoptara o nome das duas freguesias urbanas da vila e fora, às ordens do governador Cristóvão de Brito Pereira, um dos mais valorosos defensores do assédio de Caracena ao castelo, em Junho de 1665, no epílogo da Guerra da Restauração. O heroísmo de frei Bartolomeu, que tanto municiava e disparava sem parar o seu canhão no parapeito da fortaleza, como ministrava extrema-unção aos que a seu lado morriam sob os efeitos da metralha espanhola, foi depois elogiado pelo marquês de Marialva que estranhou que aquele frade se tivesse batido tão bem como o mais bem treinado soldado das suas tropas. Mais admirado ficaria se soubesse que o monge tinha múltiplas personalidades, das quais só exibia a que no momento mais lhe interessava. Ao que parece, o Códice dos Capuchos divulgava todas e cada uma delas, com o máximo detalhe. 

Ora uma delas, a que mais nos importa, revela que o nosso frade, por alturas de Setembro se retirava do ascetério, dando a entender que partia em missão doutrinária pelos olivais, searas e povoados das cercanias mas que ao invés disso envergava roupas seculares, cortava a barba que lhe compunha o rosto durante os outros onze meses do ano, cobria o crânio rapado com um gorro de flanela e se ficava pela vila disfarçado de viandante, acabado de chegar de Lisboa. Então, provava até se saciar as iguarias das tabernas da vila, enchia-se com as tibornas e o sericá locais, degustava o afamado Borba, (prazeres proibidos nos Capuchos, que ascetas não podiam ter tais faustos comestíveis) e fazia a corte às servas das casas nobres, com especial predilecção por aquela sempre renomada cozinheira do Paço Ducal, a Joana das Migas – que, contava-se, teve seis filhos, cujo pai nunca ninguém conheceu, todos nascidos em Junho… Passado esse mês de liberdade clausural auto-imposta, o bom frade voltava às suas obrigações religiosas, humilde e laborioso, rezando substancial parte do dia e na outra trabalhando na horta do convento, onde os seus legumes eram os mais viçosos e a sua hortelã a que maior efeito aromático dava à sopa da panela…

Em dia incerto de 1714, como todos os seres viventes, morreu.

Foi a partir daí que, rezava o Códice dos Capuchos, factos estranhos começaram a acontecer. Por vezes, sempre em Setembro, junto à capela do Trânsito ouvia-se misterioso lamento, misto de canto e choro, que não só amedrontava os que por ali passavam, como os próprios frades – que logo faziam grandes penitências e só não ficavam com os cabelos em pé, porque frade que se preze não os tem no alto do cocuruto… Inesperadamente, como o motivo que lhe deu fim, a partir de Setembro de 1756 os estranhos sons deixaram de se ouvir. Toda a gente tinha estranhado que o terramoto de Novembro anterior tivesse feito tantos estragos, mas que na capela do Trânsito apenas uma figura tivesse aberto leve fissura – precisamente a do frade mais próximo da janela, à direita de quem olhava as figuras… Frei Afonso escreveu no Códice que se pensou que a alma de Bartolomeu da Conceição fora ali encerrada por intercessão de S. Francisco, em virtude dos desvarios terrenos do seu seguidor – denunciados à hora da morte, por Joana das Migas aos filhos reunidos à sua volta e que, desbocados, logo os propalaram por toda a vila… – e que entretanto, devido à quebra do invólucro argiloso, de lá se escapara finalmente.

Mais tarde, alguém teve a feliz ideia de criar as festas dos Capuchos. Quanto ao Códice, desapareceu. Mas algo ainda hoje se mantém que confirma todo este historial que aqui trouxemos. Se não, vejamos: 
Nunca falham as largadas de touros, durante a Festa dos Capuchos. Quantas pessoas já morreram por causa delas? Nenhuma! E todos os que estiveram em situação mais delicada, ficando contudo apenas com um dedo partido, uma entorse ou simples galo na cabeça, dizem que no momento em que o toiro lhes ia marrar em parte vital sentiram oportuno empurrão que afastou as ornamentações do bicho das suas carnes. 

Quantas vezes houve forte ventania no arraial? Tantas e tantas! De vez em quando, lá se vê uma peruca pelos ares, echarpes voando, as donas atrás delas, em cima dos seus sapatos ou chinelinhos de salto alto, mas do coreto onde não falha uma filarmónica a tocar, já alguém viu voar uma pauta musical? Uma sequer? Jamais! E houve músicos que falaram de fenómeno singular: folhas sendo mudadas, sem eles lhes tocarem, à medida que a música se ia desenrolando.

Não há Festa dos Capuchos sem fogo de artifício, mas tirando uma telha chamuscada ou horta em que se queimam duas ou três alfaces, alguém já viu por causa do fogo haver um incêndio? Jamais! E a Mariana do Cruzeiro, que ali mora, disse que na última festa, quando a corda da roupa começou a arder devido a um foguete, as chamas pararam mesmo junto a uma peça de roupa de baixo comprada no mercado da semana anterior.

Na barraca dos frangos, alguém já ficou com um osso de galináceo atravessado na garganta? Jamais! E o Zé Borrego, que adora frango assado e o acompanha com fartas litradas de tinto, quando já trôpego da bebedeira caiu perto da igreja de Santiago, não sentiu a cabeça ser-lhe amparada por mãos invisíveis, antes de tombar no lajedo, onde caiu suavemente?

Enfim, não nos alonguemos mais em exemplos de bondade do espírito arrependido de frei Bartolomeu, pois os aqui descritos são mais que suficientes. Que os calipolenses e os forasteiros que este ano vêm aos Capuchos se acolham à sua protecção, certos de que nada lhes perturbará o divertimento e a aura que as Festas de Vila Viçosa de há muito têm. 

Quanto à história, os que não acreditaram nela, é porque são mesmo incrédulos. Relativamente a isso, nada a fazer… E não vale a pena procurar a racha na escultura, porque os fradinhos foram recentemente pintados…

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