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quinta-feira, 11 de agosto de 2022

[0332] Relembrando textos do programa das Festas dos Capuchos (5 - 2008)

Sobre as Festas de 2022, ver AQUI

Foto Joaquim Saial

Quando este texto foi escrito, em 2008, o presidente francês era Nicolas Sarkozy

UMA FAMÍLIA CALIPOLENSE

Joaquim Saial

Todos os anos, no início de Setembro, metem-se no carro, descem de Paris rumo a sudoeste, galgam a França ocidental diagonalmente, transpõem a grandeza da Espanha, entram por Badajoz e cá estão eles em Vila Viçosa onde, no primeiro dia e durante mais dois ou três, respondem às sacramentais perguntas: “Atão, já cá estás? Atão quando te vás embora?”. Depois é gozar à farta, encher os sentidos de sons, odores e sabores da terra, fruir ao máximo os vinte e tal dias de “vacanças”, sobretudo os de Festas dos Capuchos, que a “usina” lá está na Gália à espera, apesar da crise, apesar de tudo, por qualquer motivo desconhecido ou deus generoso que os protege.

Anacleto Palhinhas, o pai de família, esforçado torneiro-mecânico numa fábrica de automóveis e amante estrénuo da selecção nacional lusitana, desembarcou este ano equipado com a camisola de Cristiano Ronaldo junto à sua casa da Quinta Augusta – que toda a gente sabe ter sido forrada por fora com azulejos de casa de banho que comprou por preço barato, como resto de colecção. Após o primeiro dia, de arrumos, deixou de comer em casa e fez até agora mais de 40 incursões pelas tabernas, bares e restaurantes da vila e prepara-se para mais uma vez ser herói das largadas, mantendo o seu palmarés de feliz agarrador, sem colhidas de maior. “É da cerveja e do Borba, a barriga assim acolchoada resiste a qualquer par de cornos”, diz ele, orgulhoso.

Maria Guilhermina, a cara-metade, divide-se entre as novenas em Nossa Senhora, de quem é fiel devota desde que se entende, e a coscuvilhice com as vizinhas que lhe põem em dia tudo o que se passou na vila, nos onze meses anteriores. Gosta de se gabar do seu emprego de secretária na mairie da capital francesa, mas ninguém sabe que afinal é caixa num McDonald’s onde contudo ganha mais que um professor em princípio de carreira, em Portugal. Aguarda com expectativa a missa nocturna nos Capuchos e a vinda do Roberto Leal, sem saber que os filhos a enganaram com o nome do principal artista convidado. Mas quem a mandou esquecer-se toda a semana deste programa em cima do frigorífico, sem o ler?

Marianita, a filha, está apaixonada há três verões por um saxofonista da filarmónica. O rapaz fica bem na farda e nem as borbulhas que lhe povoam a cara fazem à rapariga parar os suspiros quando o vê arrancar solos vibrantes numa marcha ou num pasodoble. Ele sente-se mais inclinado pela Zéza, que mora para os lados do lago e é ajudante de cabeleireira, mas desde que soube que a Marianita é amiga da filha de um dos porteiros do parisiense Le Slow Club, onde se toca o melhor jazz europeu, já olha mais para ela, pensando que de Vila Viçosa ali e dali ao Blue Note nova-iorquino é um saltinho. Marianita irá passar as noites de festa especada à volta do coreto, a olhar para cima…

Chico, filho mais novo do casal Palhinhas, gasta os dias a jogar à bola com os amigos no Carrascal ou então na piscina, em longos banhos e estrondosos mergulhos de chapão que atormentam os outros utentes. Gordo e anafado, alterna os pequenos-almoços comendo duas tibornas que mete inteiras na boca e vai digerindo com a ajuda de um galão, num dia, ou uma tira de brinhol que gosta de mastigar bem coberta de canela e açúcar, no outro. Não sai ao pai na afoiteza de pega taurina mas é grande aficionado de touradas e jamais perde esse espectáculo, acompanhado de um tio que ainda foi colega do Trincheira mas que achou que trabalhar nos mármores dava mais. Ambos esperam pela corrida deste ano, com grande expectativa. Anacleto já entrou com os euros para os dois bilhetes…

Mas a família tem um quinto “elemento”: Nicolas, o terrier assim rebaptizado após a eleição do actual presidente francês e que antes se chamava Jacques, em honra do anterior. Nicolas, tal como o dono, passa os dias na rua. Descobriu na mata municipal uma cadela que (pasme-se!) gosta de açorda, coisa nunca vista, nestes tempos de odorífera comida de cão enlatada. A canídea reside no Bairro Operário e Nicolas já lá vai a casa. A dona da namorada gosta dele e dá-lhe não só açorda como migas, por vezes com um pedaço de carne de porco ou toucinho frito à mistura. O casal vive um grande romance e parece que ele já prometeu à dona do seu coração que não irão ver o fogo de artifício, do qual a bicha tem medo mortal: “Je resterai ici avec toi, ma chérie!...”, assegurou-lhe.

Chegado a este ponto da presente prosa, o leitor há-de estar cheio de curiosidade e com desejo de conhecer os cinco citados exemplares. Observe bem, esteja atento, que há-de vê-los algures por aí, nestes dias de festa. Provavelmente, anda cada um para seu lado, conforme os interesses pessoais. Claro que é aborrecido chegar ao pé de um estranho e perguntar-lhe se é o sr. Anacleto; ou junto de uma senhora e atirar-lhe com um «É a D. Maria Guilhermina?» Mas se no arraial vir um quatro-patas com o focinho sujo de pão e a cheirar a coentros, poejos ou alhos, tente um “Nicolas!, Nicolas!” Pode ser que resulte…

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